JAMILLE
é alta a noite e só uma pergunta se sustenta no ar
levanto os olhos como quem perde as esperanças
e conto as estrelas.
estaciono meu carro vermelho no pátio em frente
atrás de mim há vozes e passos
caminho em direção à porta, sou atingida bruscamente
por uma barra de ferro
na nuca
continuo andando
a nuvem de pesar se dissipa
eram dois jovens bem vestidos conversando sobre a vida
– atrás de mim.
que fazer de minha existência rouca
que fazer do meu querer
sou o que une homens (mulheres!) e lobos
sou o nome do desejo
sou uma chama que agora se apaga no fundo do peito.
é noite alta, madrugada
entre o breu e as trevas os bêbados brincam
com a fosca lucidez, o cansaço no fim do dia.
exausta me largo no sofá bonito e confortável da sala de estar
este apartamento tem o tamanho ideal do meu sonho
embora o chão do banheiro esteja sempre molhado.
eu tenho vinte e poucos anos e já vivi coisas lindas.
Um prêmio por algo que escrevi. Uma peça de teatro. O divã. Uma bolsa de estudos no exterior. Uma viagem à África. Uma noite em Dubai. Viver sozinha. Amar uma mulher. Abrir a voz e cantar. Um mestrado. A poesia. A música.
as coisas mais lindas eu aprendi a viver sozinha.
a solidão de quem teve que guardar tesouros no quintal da memória
e o medo de ser invadida.
a solidão de quem vive com determinação
de quem se olha por dentro, rasura os modelos,
suspira e chora
no descompasso angustiante desta hora.
A cidade sem o mar. sem as serras. sem o trânsito, ora!
escondo-me aqui na esperança de jamais ser descoberta.
acordei certa feita em Bordeaux
acordei certa feita em Bordeaux. à noite, no ônibus, olhava a janela à espera de que o tempo fosse gentil comigo e não passasse. afinal em poucas horas eu estaria em Bordeaux. plena madrugada, sozinha. estrangeira. é engraçado pensar que o mesmo ímpeto que me fazia amanhecer numa estação de trem em Bordeaux dividindo o sono com bêbados e moribundos — o ímpeto que me levou a ver o nascer do sol em Bordeaux às margens do rio Geronne — é o mesmo ímpeto que me levou, hoje, no mês de maio, quase três anos depois, veja só, a visitar Taguatinga numa noite fria de tempestade e vazio.
naquele dia, passeei pelas ruas de Bordeaux, seus mercados, experimentei da comida, bebi do vinho, conversei com pessoas como que pra buscar um sentido. hoje em Taguatinga pouco vi. não bebi, não comi, não falei com pessoa. é engraçado pensar que aquilo de que eu fugia quando viajei a Bordeaux permanece ainda aqui. esta solidão. esta pequenez. este embaraço.
naquele dia, fiquei doente em Bordeaux, como há de sempre ser. hoje, voltando de Taguatinga, sinto novamente aquele aborrecimento na garganta.
um roxo nó com parecenças a choro. meu corpo é só chagas de tanto desatino e descuido. este oco que mais cedo me rachou em duas, em três, esta rachadura ametista incrustada no estômago este ímpeto, ora, É o sol de Bordeaux no amanhecer do dia.
sótão
é alta a noite e só uma pergunta se sustenta no ar. levanto os olhos como quem perde as esperanças e conto as estrelas. estaciono meu carro vermelho no pátio em frente. atrás de mim há vozes e passos. caminho em direção à porta, sou atingida bruscamente por uma barra de ferro na nuca, mas continuo andando. a nuvem de pesar se dissipa. eram dois jovens bem vestidos conversando sobre a vida atrás de mim.
que fazer de minha existência rouca. que fazer do meu querer.
é noite alta, madrugada. entre o breu e as trevas os bêbados brincamcom a fosca lucidez, o cansaço no fim do dia. exausta me largo no sofá bonito e confortável da sala de estar. este apartamento tem o tamanho ideal do meu sonho, embora o chão do banheiro esteja sempre molhado. eu tenho vinte e poucos anos e já vivi coisas lindas. Um prêmio por algo que escrevi. Uma peça de teatro. O divã. Uma bolsa de estudos no exterior. Uma viagem à África. Uma noite em Dubai. Viver sozinha. Amar uma mulher. cantar. Um mestrado. A poesia. A música.
as coisas mais lindas eu aprendi a viver sozinha. Nesta cidade sem o mar, sem as vozes, sem o trânsito, ora! escondo-me aqui na esperança de jamais ser descoberta.